O envelhecimento populacional é um dos fenômenos mais marcantes do século XXI. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o número de pessoas com 60 anos ou mais vai ultrapassar 2 bilhões até 2050, e 80% delas viverão em países em desenvolvimento. Esse cenário exige não apenas políticas de saúde, mas um redesenho completo das cidades para garantir autonomia, segurança e bem-estar ao longo da vida.
Entre os pilares do envelhecimento ativo proposto pela OMS, a participação social e a mobilidade segura ocupam papel central. No entanto, em muitas cidades brasileiras e latino-americanas, a infraestrutura urbana ainda ignora as necessidades de uma população que caminha mais devagar, precisa de tempo para atravessar a rua ou busca espaços públicos com acessibilidade e conforto.
A caminhabilidade, ou seja, a qualidade e a segurança para se locomover a pé pelos espaços urbanos, é um indicador direto da qualidade de vida. Ela está associada à manutenção da funcionalidade, à prevenção de quedas, ao estímulo à vida comunitária e até mesmo à saúde mental de pessoas idosas. No entanto, calçadas estreitas, desníveis, travessias mal planejadas e semáforos com tempo insuficiente continuam a afastar essas pessoas do convívio urbano e a empurrá-las para o isolamento.
No Brasil, a cidade de Santos (SP) destaca-se como exemplo extremo desse fenômeno demográfico: com cerca de 19% da população com 60 anos ou mais, ela apresenta o maior percentual de idosos entre as cidades brasileiras com mais de 100 mil habitantes.

Apesar da cidade ser frequentemente elogiada por seus índices de qualidade de vida e longevidade, essa proporção elevada imprime desafios urbanos singulares para garantir uma cidade verdadeiramente acolhedora e segura para todas as idades. Basta caminhar por algumas quadras para perceber que a experiência urbana ainda está longe de ser verdadeiramente acessível para todos. (Crédito da imagem: arquivo pessoal)
Especialmente para quem mais precisa: pessoas idosas, com mobilidade reduzida, cuidadores e crianças pequenas. O planejamento urbano, muitas vezes, ignora a lógica do corpo que desacelera com a idade, do tempo que se alonga em cada travessia e da importância simbólica e funcional de simplesmente poder caminhar com segurança e autonomia. (Crédito da imagem: arquivo pessoal)

Caminhabilidade: o direito básico que sustenta o envelhecimento ativo
A caminhabilidade é um componente essencial da promoção de um envelhecimento ativo e saudável, conforme diretrizes da Organização Mundial da Saúde (OMS). Poder sair de casa, andar até a feira, visitar amigos, passear com o neto, frequentar uma praça, todas essas ações dependem de infraestrutura segura, intuitiva e contínua. Quando a cidade falha nesse aspecto, o impacto vai muito além da mobilidade: afeta a saúde física, o bem-estar emocional e até mesmo o vínculo social.
O que (ainda) impede o caminhar: barreiras urbanas invisíveis
Durante observações recentes feitas em rotas cotidianas da cidade de Santos, identifiquei diversos obstáculos que comprometem seriamente a mobilidade urbana:
- Guias rebaixadas sem continuidade ou mal posicionadas, que terminam em calçadas inacessíveis;
- Calçadas desniveladas, esburacadas ou muito estreitas, muitas vezes com postes e lixeiras no meio do caminho;
- Semáforos com tempos curtos de travessia, incompatíveis com o ritmo de quem possui mobilidade reduzida;
- Falta de bancos e áreas de descanso, essenciais para quem não consegue caminhar longas distâncias de uma só vez.
Esses elementos tornam cada saída de casa um desafio, especialmente para as pessoas idosas. E o efeito acumulado é o isolamento, a inatividade e, em muitos casos, a desistência de ocupar o espaço público.
Quando a cidade exclui, a saúde pública sofre
A relação entre espaço urbano e saúde é direta e amplamente documentada. Ambientes mal planejados aumentam o risco de quedas, promovem o sedentarismo, ampliam quadros de ansiedade e depressão, e contribuem para a desconexão social, todos fatores que afetam negativamente o envelhecimento.
Para além da infraestrutura física, essa exclusão impacta os serviços de saúde: aumenta a demanda por internações, eleva o custo com tratamentos de longa duração e reduz a efetividade de programas de prevenção e promoção à saúde.
Planejar com empatia: o papel do urbanismo no bem-estar longevo
Um território que promove o envelhecimento saudável é aquele que:
- Oferece calçadas niveladas, amplas e contínuas, com materiais antiderrapantes;
- Garante travessias seguras, com rampas bem posicionadas, sinalização clara e tempo de semáforo compatível com o ritmo dos idosos;
- Disponibiliza mobiliário urbano acessível, como bancos, bebedouros e pontos de apoio;
- Estimula a ocupação do espaço público, com praças, hortas comunitárias, equipamentos de lazer e locais de convivência intergeracional.
A cidade ideal para o envelhecimento não é aquela com mais hospitais, mas aquela em que o cuidado acontece antes da doença no trajeto, na convivência e no cotidiano que respeita o tempo de cada um.
Tecnologia, modularidade e novos modelos de cuidado urbano
No Mari Chao Arquitetura, temos explorado soluções arquitetônicas que dialogam com esse desafio urbano. A Estação de Telessaúde Integrada de Bem-Estar, por exemplo, é uma estrutura modular que pode ser instalada em locais estratégicos para oferecer suporte remoto e presencial à saúde da população, inclusive em pontos onde a infraestrutura urbana ainda não garante acesso.
Mas o espaço urbano não pode depender apenas de soluções pontuais. É preciso que o planejamento das cidades incorpore definitivamente a Arquitetura do Cuidado, a acessibilidade universal e a lógica do envelhecer com dignidade como elementos estruturantes.
Envelhecer com dignidade exige cidades que acompanhem o nosso ritmo
Enquanto não garantirmos que todas as pessoas possam caminhar com segurança pelas ruas do seu próprio bairro, estaremos falhando em nossa responsabilidade coletiva de promover longevidade com qualidade.
O envelhecimento saudável não começa na clínica. Começa no chão da cidade. Na rampa que permite o ir e vir. Na faixa que dá segurança. No banco que acolhe uma pausa. No percurso que permite o pertencimento.
E se o próximo passo não couber na cidade?
À medida que o tempo desacelera os corpos, cresce a urgência de territórios que acolham esse novo ritmo. Uma cidade que dificulta o simples ato de caminhar impõe limites silenciosos à liberdade, ao pertencimento e à saúde.
Talvez a verdadeira medida de uma cidade inclusiva não esteja em sua modernidade ou infraestrutura, mas na gentileza com que permite cada passo, mesmo o mais lento, acontecer com dignidade. Porque onde a cidade falha em acompanhar, o envelhecer deixa de ser escolha e passa a ser renúncia.
A pergunta que fica é: o urbanismo está disposto a caminhar junto com o tempo das pessoas?


